Atualmente no contexto de
obrigatoriedade da disciplina de Filosofia no Ensino Médio, muito se tem
afirmado que a prática da Filosofia na escola deve despertar , sobretudo, o
senso crítico, através de questionamentos
em relação ao cotidiano e temas que o cercam. Em outras palavras, o
ensino de Filosofia deve desenvolver um conhecimento de caráter universal, que
visa a potencialização de uma educação que não se concentra apenas na sala de
aula e na escola, mas “uma educação que ultrapasse os muros da escola,
fundamentando, assim, a importância da reflexão filosófica do aluno”
(ARANHA; MARTINS,1996, p.23).
Nesse sentido, desenvolver um
ensino de filosofia eficaz, pressupõe não só a utilização dos textos clássicos
dos filósofos que fizeram e promovem a perpetuação da filosofia como apenas
mais uma disciplina do currículo, mas como um distintivo que possibilite o
desenvolvimento da criticidade dos alunos do Ensino Médio por meio do respeito
às diferenças. Dessa forma, é necessário compreender que o ensino da filosofia:
Trata-se, então, de levar esses
adolescentes a experienciarem essa atividade reflexiva de compartilhamento
desse processo de construção de conceitos e valores, experiência eminentemente
pessoal e subjetivada, mas que precisa ser suscitada, alimentada, sustentada,
provocada, instigada. Eis aí o desafio didático com que nos deparamos
(SEVERINO, 2004, p. 108).
Sobre
a relação entre ensino de filosofia e respeito às diferenças como possibilidade
o despertar da capacidade reflexiva do aluno, as Orientações Educacionais
Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (2013) ao tratarem “representação
e comunicação” defendem que, em primeira instância, o professor de Filosofia
deve despertar no aluno a capacidade de reflexão e problematização, ou seja, o
fazer filosofia filosofando, por meio da “análise interpretativa” (BRASIL,
2013, p. 47).
Essa análise interpretativa não
deve ser desarticulada dos conteúdos do cotidiano escolar, sem estabelecer uma
relação entre a teoria e prática, pois as informações recebidas não presentam
relações com a realidade. Não é necessário, nem defendemos essa prática aqui,
que o professor de filosofia abandone os textos clássicos de filosofia, pois,
Chauí (2009) justifica que somente a leitura dos clássicos possibilita a
compreensão primeira dos discursos proferidos pelos filósofos em suas obras.
Porque a filosofia é um discurso dotado
de características próprias, a iniciação a ela encontra um caminho seguro no
ensino da leitura dessa modalidade de discurso, a fim de que os alunos aprendam
a descobrir, no movimento e na ordenação das ideias de um texto, a lógica que
sustenta a palavra filosófica para que possam analisá-la e
comentá-la, primeiro, e interpretá-la,
depois (CHAUÍ, 2009, p. 12).
O desafio
que se lança ao professor de filosofia no Ensino Médio, portanto, é da
necessidade de reflexão e discussão constante, sobre os pressupostos
epistemológicos e conteúdos de suas práticas educacionais visando um ensino que
favoreça a formação da criticidade do aluno, que estes se tornem reflexivos e
que saibam resolver problemas das mais diversas naturezas.
O
COTIDIANO: UM NOVO DOMÍNIO PARA A FILOSOFIA
O
cotidiano, como afirma Gallo é o “conjunto de coisas e situações que acontecem,
acontecimentos pedagógicos. Se aprende na formalidade e na informalidade das
múltiplas relações e acontecimentos. Não existe o controle absoluto de tudo que
acontece” (2007, p.21).
Se
o cotidiano pode ser tomado como um conjunto de acontecimentos, ele nos coloca
em prontidão para a experiência filosófica, na medida em que não podemos
exercer o controle absoluto dos acontecimentos. Essa noção de cotidiano e suas
potencialidades filosóficas, se torna um elemento distintivo para ressignificar
as diferenças..
É
oportuno mencionar aqui um comentário de Guatarri que constitui uma provocação
interessante para os professores de filosofia:
(...) uma
criança, sentada ao fundo da classe, está de saco cheio e começa a jogar
chicletes ou bolotas de papel na cabeça dos outros. Diante dessa situação,
geralmente o que fazemos é colocar a criança que está perturbando para fora da
sala de aula, ou tentar fazer com que ela se manifeste o menos possível, ou
ainda, se estivermos em sistemas mais sofisticados, encaminhá-la para um
psicólogo. É muito raro nos perguntarmos se esse fato de singularidade não
estaria dizendo respeito ao conjunto da classe. Nesse caso, teríamos que questionar
a nossa posição na situação e desconfiar que talvez outras crianças também
estivessem de saco cheio, só que sem manifestá-lo do mesmo modo.
Em outras
palavras, um ponto de singularidade pode ser orientado no sentido de uma estratificação que o anule completamente, mas
pode também entrar numa micropolítica que fará dele um processo de
singularização. (GUATARRI & ROLNIK, 1986, p.51).
O
fragmento acima demonstra que o professor de filosofia pode localizar o
problema no aluno, enfim, sempre no outro, raramente em sua maneira de atuar em
sala, de reconsiderar o cotidiano da sala de aula, atitude essa que impede que
aconteça de fato uma experiência filosófica. Mas o que é uma experiência? O que
ela tem a ver com o cotidiano? O que é necessário para que ela seja filosófica?
Segundo Aspis e Gallo:
A experiência é
aquela coisa que, ao acontecer a alguém, transforma essa pessoa, que já não é
mais a mesma. É algo que atravessa seu pensamento, suas ideias e faz com que já
não possa ser mais o mesmo. Algo se passa, toca e é apreendido de forma
transformadora. A experiência filosófica é a experiência de fazer filosofia. É
isso que queremos proporcionar aos jovens: a experiência de filosofar. (...)
Para Kant, a
filosofia é um saber que está sempre incompleto (...) O ato de filosofar seria
composto por de passos consistentes na análise e crítica dos sistemas
filosóficos ( 2009, p.17).
Não
é muito raro encontrar alguns professores de filosofia incomodados com essa
afirmação de que o cotidiano é passível de ser considerado como portador de
experiência filosófica, afirmando que tal argumento seria uma subversão do
ensino de filosofia pautado em análises de conceitos e leitura dos textos
tradicionais da filosofia, pois é uma metodologia mais adequada para instigar
os jovens de maneira mais rigorosa, a partir do legado filosófico dos grandes
pensadores. Também é possível encontrar aqueles que afirmam ser essa uma
separação da experiência filosófica da filosofia. Não seria esse um argumento
de conformidade com as obediências em massa?
Apostar
na reconsideração cotidiano como portador da possibilidade da experiência filosófica é sugerir uma disponibilidade ao
professor de filosofia fazendo-o praticar possíveis interferências filosóficas
em seu cotidiano escolar. Como sugere Silvio Gallo são: “estratégias” para as
leituras dos textos filosóficos, esclarecendo tudo o que for preciso, para que
se possa existir, realmente, a compreensão daquilo que é trabalhado (2012,
p.103).
Não se pode cogitar que o incentivo aos
jovens de praticarem a produção autônoma de vídeos sobre a intolerância, como
mencionado anteriormente, seja uma prática desvinculada da necessidade de terem
contato com o texto de autores clássicos da filosofia, bem como de compreender
de forma crítica, seus métodos, sua história, seus problemas e seus conceitos.
Aqui deve ficar evidente que isso é importante, bem como, seria imprudente
desvincular a filosofia do filosofar, pois, as duas coisas, ainda que de forma
sutil, são uma só.
Nesse
caso, o importante é que o professor de filosofia não perca a chance
singular de adotar uma via completamente diferente daquela planejada, de
construir um processo educativo comprometido com a formação da cidadania.
Diante dessas situações concretas que emergem no cotidiano da sala de aula, o
docente de filosofia deve eleger os temas e procedimentos que ele considera
importante para as consecuções estabelecidas para o ensino de filosofia.
Deve-se
ainda, nesse contexto, considerar que a abordagem do professor, bem como a
seleção de material utilizado em sala de aula revela em boa medida o seu modo
de ver as coisas, sua opção por uma maneira de filosofar. Isso faz parte do
ensino de filosofia, aliás, isso é essencial na proposta dos Parâmetros
Curriculares Nacionais do Ensino Médio:
(...) Tenha feito sua escolha categorial
e axiológica, a partir da qual se lê e entende o mundo, pensa e ensina. Caso
contrário, além de esvaziar sua credibilidade como professor de Filosofia,
faltar-lhe-á um padrão, um fundamento, a partir do qual possa
encetar qualquer esboço de crítica. Por certo, há filosofias mais ou
menos críticas. No entanto, independentemente da posição que tome (pressupondo
que se responsabilize teórica e praticamente por ela), ele só pode pretender
ver bons frutos de seu trabalho docente na justa medida do rigor com que operar
a partir de sua escolha filosófica – um rigor que, certamente, varia de acordo
com o grau de formação cultural de cada um (2006, p. 48).
Lutar
para que a filosofia permaneça como disciplina no currículo escolar, não é
suficiente. É preciso engendrar novas formas de abordagem para que o
aprendizado seja de qualidade no qual os estudantes possam, por meio da
produção autônoma no cotidiano, que é uma experiência filosófica, poderão
reconhecer a filosofia e sua importância sem que haja risco de perdê-la.
Segundo Alejandro Cerletti:
Sabemos também
que uma parte importante da legitimidade que possa ter nosso campo deverá ser,
em última instância, uma autolegitimação (somos conscientes de que são cada vez
mais frequentes as tentativas de excluir progressivamente a filosofia dos
currículos obrigatórios, substituí-las por outras disciplinas supostamente mais
úteis ou práticas para o mundo de hoje) (2004, p. 22).
Portanto,
é fundamental que cada educador, contribua para que haja uma mudança no ensino
de filosofia em nosso país, e principalmente na escola pública. Que o professor
possa ver os aspectos filosóficos do cotidiano. Não seria forçoso aqui,
recorrer à célebre passagem de Wittgenstein nas Investigações Filosóficas sobre o cotidiano: “Queremos compreender algo que já esteja diante de nossos olhos.
Pois parecemos, em algum sentido, não compreender isto.” (IF, § 89, p. 61).
Este isto apontado por Wittgenstein é nada menos que o cotidiano que está
presente em todos os âmbitos da vida, e que permeia todas as nossas atitudes
sociais em quaisquer contextos práticos da vida.
A
emergência da ressignificação do cotidiano da sala de aula, isto é, como o
professor reage diante dos acontecimentos cotidianos? A resposta é decisiva,
pois, esses acontecimentos são potencialmente legitimadores do papel da
filosofia na vida do educando no ensino médio. Eles podem reconstruir de
maneira racional o lugar da filosofia, assim como proporcionar a formação de
indivíduos, críticos, reflexivos, autônomos, etc. categorias estas que devem
ser colocadas em prática.
O
cotidiano é sempre possibilidade de criação, é espécie de aridez em que a
experiência flui livremente e o diferente se põe em evidência. Se o professor de filosofia suportar a
sensação de estrangeiridade em sala de aula, pode agir de modo diferente, isto
é, de maneira a produzir experiência filosófica.
Para
produzir a experiência filosófica é importante abrir-se aos acontecimentos.
Atentar-se, ver os aspectos “ um estado particular, nele não há possibilidade
de enganos,” (GLOCK, 1998, p.53), que ocorrem dentro da sala de aula, afim de
potencializá-los filosoficamente, e não ser tragado pelo acontecimento.
Perder-se num acontecimento é perder a potência de uma produção filosófica.
Produzir,
criar, ressignificar. Essas são as possibilidades que nos abre a
ressignificação do cotidiano nas aulas de filosofia, quando escolhemos
interagir com os fatos, com os acontecimentos.
REFERÊNCIAS
ASPIS,
Renata Lima e GALLO, Silvio. Ensinar
filosofia: um livro para professores. São Paulo: Atta Mídia e Educação,
2009.
BRASIL. Governo Federal. Lei n. 11.684, de 02 de
junho de 2008. Altera art. 36 da Lei 9394-96, Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Brasília, DF, 2008.
FARIAS,
Isabel Maria Sabino de. SALES, Josete Castelo Branco. BRAGA, Maria Margarete
Sampaio de Carvalho e FRANÇA, Maria do Socorro Lima Marques. Didática e Docência: Aprendendo a
profissão. Brasília: Liber Livro, 2009.
GALLO, Silvio.
“Acontecimento e Resistência: educação menor no cotidiano da escola”, In.:
CAMARGO, Ana Maria Faccioli e MARIGUELA,
Márcio. Cotidiano escolar: emergência e
intervenção. Piracicaba, SP:
Jacintha Editores, 2007.
GALLO, Silvio. Metodologia do ensino de filosofia. Campinas: Papirus, 2012.
GLOCK,
Hans-Johann. Dicionário de Wittgenstein. Verbete: Ver aspectos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
GUATARRI, F. & ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias
do Desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.
HORN,
G. B. Ensinar Filosofia: pressupostos
teóricos e metodológicos. Ijuí: Unijuí, 2009.
JÚNIOR,
José Benedito de Almeida. Metodologia do ensino de Filosofia. Uberlandia MG, 2007.
KANT, Immanuel. Crítica
da Razão Pura. São Paulo: Abril, 1983. Col. Os Pensadores.
RODRIGO,
Lídia Maria. Filosofia em sala de aula:
teoria e prática para o ensino médio. Campinas: Autores Associados, 2009.
VEIGA,
Ilma P. Alencastro. Aula: Gênese,
princípios e práticas e práticas. Campinas, São Paulo, 2008.
WITTGENSTEIN,
Ludwig. Investigações filosóficas.
Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.
[...] Em sua maior parte encontra-se em escolas
públicas com precária qualidade de ensino, sendo portadora de graves
deficiências educativas, tanto do ponto de vista linguístico como em relação a
referências culturais de caráter mais amplo” (RODRIGO, 2009, p. 1).